quarta-feira, 29 de outubro de 2008

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Parte 26

A chuva fina retornou no crepúsculo. O formigueiro humano não se dissipou, mais uma vez a neblina. Mais uma vez, nós três, cafalhões percorrendo os labirínticos becos e ruelas. Eu olhando os telhados e torres do Pelourinho. Um desenho dessa fantástica arquitetura no meu imaginário: O céu vermelho pálido filtrado com os pingos agulhas da chuva. Um plural de cores da cidade viva.
Eu, ali, mesmo sendo brasileiro, era mais que um estranho estrangeiro. Um espectro em Salvador.
Ninguém daquela gente sabia por que eu trafegava as ruas e nem se importavam com isso. E em Porto Alegre eu não existia. Um quadro surrealista com marcas das pinceladas e texturas. Eventos e situações diversas e contraditórias.
Eu busco um sentido oculto, uma conspiração factual para saber exatamente porquê. Afinal, por quê? Qual é o verdadeiro sentido de receber esse convite profissional? Para que serve uma adaptação para quadrinhos de Os sertões?
O que eu quero dizer é: A Guerra de Canudos é mais que literatura, é mais que história. É vida. Vida e morte. Mitologia pura, mitologia brasileira, mitologia universal sobre a força e a fraquesa humana e suas contradições. O que aconteceu em Canudos é como um arranhão em um disco de vinil para a humanidade. O som se repete como um eco. A mesma frase, ou verso cantado em ruptura. Ordem natural. Canção.
Há agora a mesma épica tragédia no Iraque. A sombra da desgraça na África. Em tantos lugares e épocas a lei selvagem e corrupta. O lado mais informado, rico, tecnológico, supostamente civilizado se volta contra o lado mais pobre, primitivo. Mas a humanidade é de aparência fraca. Um punhado de homens, mulheres e crianças mal alimentadas sempre serão feridas abertas.
Aqui vou entregando a raiz do drama do livro. É necessário queimar as páginas, a encadernação, as edições, principalmente o discurso crítico e as cifras. Voltar a ouvir o eco dos mortos na chacina. Ouvir a terra. O assobio do vento seco. Ver os fantasmas, suas vidas e crenças.
Está tudo conectado. Ar, raiz e terra. Precisou morrer uma nação para eu ser descoberto por uma editora e descobrir o real sentido de eu escrever essa adaptação. Não quero ser mais um que não fala nada e se cala. Não quero defender uma estética sem conteúdo. Não penso em ser só um corpo em movimento programado e não saber o que é subtexto.
A chacina no sertão, de certa forma, financiou esse meu devaneio e passos nas ruas de Salvador. Esse meu louco monólogo.
A chuva foi um batismo, uma transmutação. Evento místico. Agora o monstro só ficará mais louco. As vozes fantasmagóricas dessas personagens foram ouvidas. Almas partidas na faca, nas balas e nos tiros de canhão.
O nordeste é uma entidade de religiosidade selvagem e viva. Explode o seu passado nos rostos. Foi o que eu vi em Salvador, naqueles que passavam vivos e mortos por mim.

“ Agora eu estou pronto para a jornada até o sertão, pronto para ir onde viveu e morreu Canudos.”

Rogério nos esperava na porta do sebo. Ele chegou lá com passos mais rápidos e uns trinta segundos antes. O sebo era de um amigo dele. Rodrigo, esperto entrou e olhou tudo, olhos atentos nos livros e já saiu perguntando por tudo que interessava. Por Antônio Conselheiro, por Euclides da Cunha...
Eu ainda era um habitante do meu mundo surreal. Eu estava cego e não prestava a atenção em nada. Eu aguardava um sinal, uma revelação que veio com o voz do Rodrigo.
“ Cara, olha ali o diário de expedição do Euclides da Cunha.”

sábado, 11 de outubro de 2008

Parte 25

Lembro que seguimos por um beco. Uma chuva fina e uma certa neblina no ar. O Rogério, Rodrigo e eu desviando das gotas embaixo das marquises. Os nossos passos eram apressados. A conversa do Rogério e o Rodrigo parecia um dialéto esquecido pelo tempo. Eu realmente me deixei levar pela imaginação. Fantasiei as impressões que Euclides da Cunha teve de Salvador. Transmigrei a minha visão para o passado, para um vórtice como na série "O Túnel do Tempo". Então, lá estava Euclides da Cunha caminhando entre os trausentes, o seu espectro atravessando o mulato artista dos retratos de acrílica, o escritor de Os Sertões mergulhava no corpo da baiana do acarajé. Ele seguia indiferente na chuva, passos mais rápidos que os nossos, vi que em suas mãos tinha um caderno de couro. Batidas ritmas dos seus dedos imitavam a música cabocla. O olhar dele capturava tudo, homem de olhos infantil parecia escrever com a visão.

"Carlos...Carlos...Em que planeta tu tá?"

Estávamos agora os três olhando o mar. Próximo de nós um museu, fui parado por um tipo estranho e já fui avisando que eu não tinha dinheiro. Mas ele disse que não queria dinheiro, mas queria me dar um colar. Colocou o colar multicolorido feito com sementes no meu pescoço. Rogério disse para eu ter cuidado. O sujeito estranho seguiu a sua viajem e se misturou no formigueiro humano.
O sol tímido nas nuvens prenunciava o fim de tarde. Parou de chover.
Entramos no museu e lá havia uma exposição sobre Canudos. Diversas fotografias de Flávio Bastos, jornais da época, fardas, trajes, e um caderno de couro aberto revelando as anotações originais de Euclides.

" Precisamos encontrar um sebo, Rodrigo."

domingo, 5 de outubro de 2008

Parte 24

Saímos da escadaria e seguimos nas ladeiras do Pelourinho. Como não lembrar de Caribé, de Hugo Pratt? Como não pensar em meu pai? Salvador é mágico, é sensorial e é uma babilônia viva de multicores e olhares. Eu parecia estar chapado de marijuana, acho que nunca estive tão sereno e calmo. Provavelmente eu estava chapado de marijuana... Já que a cidade cheira a marijuana.
Eu tinha a sensação de que cada esquina ou rua que seguíssemos, o realismo fantastíco abriria as suas portas para o céu. Foi o que aconteceu quando entramos em um sebo e nos deparamos com o diário de expecição de Euclides da Cunha.